Abel e Britney

Pedro Carvalho elogia abordagem trans em A Dona do Pedaço: “Leve e cômica”

Ator torce por um beijo entre o casal na trama das 21h

Publicado em 18/09/2019

Pedro Carvalho não é o tipo de ator que teme se envolver em polêmicas em nome da profissão – coisa que já vem desde sua carreira em Portugal. Depois de ter dado o que falar na ‘terrinha’ ao protagonizar cenas gays com o galã Duarte Gomes na novela local O Beijo do Escorpião (2014), ele agora faz par romântico com a atriz transexual Glamour Garcia em A Dona do Pedaço.

O Abel está muito magoado com a Britney porque ela não contou desde o início [que era trans]. Mas ao mesmo tempo ele gosta dela. Por isso que ele tem aquelas ‘crises de TPM’ toda hora. [risos] É muito óbvio que ele a ama. Do contrário, ele seria indiferente“, analisa o ator, a respeito da relação entre os dois personagens.

Se ele torce para uma cena de beijo com Glamour no sucesso do horário nobre global? “Eu já queria que tivesse acontecido há anos! Seria maravilhoso!“, vislumbra.

Confira nossa entrevista completa com o galã lusitano, que já emplaca sua terceira novela no Brasil.

OBSERVATÓRIO DA TELEVISÃO – A descoberta do Abel de que a Britney é transexual marcou um divisor de águas na trajetória do personagem em A Dona do Pedaço. Como está sendo pra você essa nova fase?

PEDRO CARVALHO – Essa foi uma cena que se esperou muito para acontecer. Nós mesmos já sabíamos como ia ser a cena. Ficou uma cena muito bonita, emotiva, como vocês viram, e teve uma repercussão muito boa. E é uma fase muito interessante da novela porque é a virada de vários personagens ao mesmo tempo – a Fabiana (Nathália Dill) assume a fábrica, etc. O Abel está muito magoado com a Britney porque ela não contou desde o início [que era trans]. Mas ao mesmo tempo ele gosta dela. Por isso que ele tem aquelas ‘crises de TPM’ toda hora. [risos] Porque ele é tão bronco, é muito óbvio que ele a ama. Do contrário, ele seria indiferente. É por isso que ele está sempre espicaçando ela. É aquela coisa, ‘eu te amo, mas eu te odeio; eu te odeio, mas eu te amo’. E vão ter cenas muito engraçadas agora. Porque quanto mais ele fica ‘atrapalhado’ com a presença da Britney, porque gosta muito dela, ele começa a trocar os pés pelas mãos, as mãos pelos pés… Erra as receitas toda hora, faz bagunça, briga com a Fabiana. Acontecem muitas coisas, que vão dar uma leveza legal nesse núcleo da fábrica. E, além de significar mais comédia na história, é a reaproximação dos dois personagens. É muito bonita a forma como o preconceito consegue ser educado, né? Sem presunção nenhuma, eu vejo o Abel como uma ferramenta de educar pessoas. Foi muito inteligente da parte do Walcyr [Carrasco, autor da trama] colocar dois personagens e falar de um tema tão importante, que tem que ser falado aqui ainda, de uma forma tão leve e cômica, mas sem perder a verdade, o concreto, a seriedade das coisas. Porque estamos abordando uma coisa muito séria. E a questão é que o Abel é isso: um cara que não tem cultura, fala tudo errado, e ao mesmo tempo muito inocente, de coração puro, bom – mas que realmente foi educado num mundo preto e branco. E agora o que acontece é que ele descobre o amor numa pessoa como a Britney. E o amor é isso mesmo: é de pessoa pra pessoa. Não interessa o sexo, a etnia… Claro, cada um tem sua preferência sexual. Mas eu acho que no fim das contas o amor é o vale. E é muito bonito ver que o preconceito é possível de se educar. Eu diria que o preconceito é sinônimo de egoísmo – significa afirmar que a pessoa tem que ser do jeito que você quer ou pensa. E isso é uma lição interessante. Se a gente, eu e a Glamour, conseguirmos tocar na cabeça de alguém e mudar a forma dela de ver o mundo, eu já vou ficar muito feliz. Acho que a gente tem que caminhar pra uma geração em que a diferença do outro é vista como uma qualidade. Como de fato é. Porque vivemos todos debaixo do mesmo teto, pagamos os mesmos impostos, e cada um tem o direito de ser feliz como quer ser. E a gente está falando de amor, não está falando de ódio. Entendo que o Walcyr construir o Abel dessa forma – um cara muito bronco, meio bruto e tal – para dar essa característica nele. Porque realmente lhe falta cultura, e ele vai se educando agora, vai se construindo. E é muito bonito ver essa construção do personagem agora e daqui em diante.

Eu acho o maior barato o jeito dele de falar, ‘se sacudindo’. Em quem você se inspirou?

Mesmo a Amora [Mautner, diretora da trama], o Walcyr e até amigos meus vêm me falar: ‘cara, eu vejo você na novela e não tem nada a ver!’ Realmente, eu não tenho nada a ver com o Abel! E a questão é que, quando eu comecei a compô-lo, eu me referenciei em várias coisas, inclusive em um conhecido lá de Portugal, que tem um ‘jeito’ parecido. Mas queria lhe um dar tom meio ‘brutalhão’, sabe? E, quando cheguei ao Brasil em 2015, pra gravar minha primeira novela aqui no Brasil, eu assisti a uma coisa chamada Chaves [o seriado mexicano do SBT]. E eu adorava Chaves! [risos] Eu não conhecia e pensei: ‘isso é muito legal, que louco!’ Fiquei vendo o jeito dos atores de se moverem e falarem em cena e pensei: ‘vou pegar isso e vou colocar no corpo do Abel’. E ele tomou, de fato, uma repercussão muito grande. No grupo de discussão, ficou claro que o público ama esse casal, Abel e Britney! E é muito interessante ver como, mesmo nesse momento político atual do Brasil, esses personagens são tão queridos pelo público. A nossa forma de passar essa mensagem é de uma verdade muito grande e de uma responsabilidade muito grande também.

O fato de você e a Glamour serem amigos também fora de cena facilita na questão das cenas amorosas?

Muito! Completamente! Já na preparação de elenco a gente se deu muito bem. Tanto que os preparadores já falavam: ‘cara, vocês vão ser o casal da novela’. Porque ela é muito engraçada, se doa muito. É o primeiro trabalho dela assim [com maior projeção na TV]. Eu já tenho mais experiência, então ela se apoia muito em mim. E eu gosto de jogar, sabe? A gente vai pro set e se diverte muito. Eu começo o dia rindo e termino o dia rindo, de verdade. [risos]

Você comentou que as pessoas estão torcendo muito pelo Abel e a Britney. Mas você ouve também críticas ou coisas negativas a respeito deles?

Muitas! Em Portugal eu já gravei muita novela, e já tinha feito por lá um ou dois personagens muito polêmicos. E realmente, as pessoas às vezes do outro lado não pensam que a gente é um ser humano e que eles, ao atacarem o personagem, estão atacando pessoas que se veem nesse personagem. Nesse meu atual personagem, também recebo comentários negativos. Mas, quando ouço esse tipo de opinião pejorativa, eu só consigo sentir pena dessas pessoas que não vivem nesse mundo, né? Mas, quanto a isso, nada se pode fazer. O que eu faço é, a não ser que seja um comentário muito agressivo, eu deixo ficar ali. Porque depois vêm outras pessoas e rebatem esse comentário. Ontem, a Globo publicou uma foto minha das gravações, e veio um conjunto de pessoas falando as coisas mais horríveis que vocês possam imaginar acerca da Britney. Comentários bem pesados, transfóbicos mesmo. Mas depois, logo a seguir, vieram outras pessoas criticando a postura dessas primeiras. E é muito legal ver isso. Ao mesmo tempo, há toda uma controvérsia em cima do Abel. Muitos o criticam por ser preconceituoso, outro alegam que a Britney devia ter contado antes [sobre ser trans].

E nas ruas, como tem sido? Já ouviu algum comentário preconceituoso?

Sim. Isso é uma coisa muito grave. Outro dia desses, eu escutei um comentário horrível e tive que rebater. Havia um grupo de pessoas me abordando, e uma delas se referiu a Britney como ‘ele’ – e eu imediatamente corrigi: ‘não é ele, é ela. Ela é uma menina. Não importa o que ela ‘tem’ ou não ‘tem’. Ela se sente menina. Então é menina sim!’ E eu faço questão de rebater cada pessoa que fala isso. Ela se sente assim, ela é assim. Eu me sinto assim, eu sou assim, e ponto final. Às vezes é de comentário em comentários que vamos levar as pessoas a ir mudando as suas mentalidades. É nossa missão enquanto artistas, atores, passar também essa mensagem, educar mentalidades, na medida daquilo que a gente pode fazer. Por mais que seja comédia e tudo o mais, a abordagem dentro da novela, estamos falando de coisas muito sérias. O personagem da Glamour ainda vai passar por muitas situações de assédio moral – inclusive, o meu personagem vai começar a defendê-la em muitas dessas situações.

O próprio Abel tem muitas falas preconceituosas dentro da trama. Você acha que a comédia ameniza esse lado dele?

Eu acho que a comédia não é desculpa pra isso. O personagem é cômico, pela forma de ele ser e tal. Mas é o protótipo de uma pessoa realmente como eu falei – sem cultura. Dentro dessa proposta, ele não é mau nem bom, embora seja uma pessoa de bom coração. Entendo o preconceito como falta de conhecimento, o medo do desconhecido. E por isso ele fala aquelas coisas do tipo ‘menino veste azul, menina veste rosa’. Mas o interessante da novela é justamente mostrar como vai acontecer a transformação dele em cima desse preconceito – uma coisa perfeitamente capaz de acontecer nos dias de hoje.

O Abel passou por uma situação ‘curiosa’ com a Britney – porque pessoas trans no Brasil são identificadas claramente, por mais possibilidades que elas tenham.

Sim, é a construção do personagem, ser um cara mais ‘na lua’. Eu próprio olho pra Glamour e a enxergo como uma menina, isso desde o início, de verdade. Tem algumas pessoas que mandam mensagens pra mim e perguntam se ela é mesmo trans! Eu acho que o casting [escolha da atriz] foi muito bem feito, em todos os sentidos, principalmente pelo talento dela. A gente se deu muito bem contracenando. Mas isso [de uma pessoa trans não ser imediatamente reconhecida] realmente existe! A própria Glamour fala isso. Muitas trans deixam a revelação pra hora do ‘vamo ver’.

Já está preparado pras cenas de beijo?

Poxa, eu já queria que tivesse acontecido há anos! [risos] Eu acho que seria maravilhoso! Isso tem que acontecer!

Com técnica ou sem técnica?

Eu sou um ator, um profissional… Sempre beijo técnico! [risos]

(entrevista realizada pelo jornalista André Romano)

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