Shirley Cruz se inspirou em Marielle para viver lésbica bem-sucedida em Bom Sucesso: “Busquei referências em vídeos”

Publicado em 23/07/2019

Shirley Cruz será Gláucia em Bom Sucesso, próxima novela das sete da Globo que estreia dia 29 de julho. A personagem é uma mulher negra, bem-sucedida, lésbica e diretora comercial da Editora Prato Monteiro, do protagonista Alberto (Antonio Fagundes).

Gláucia é uma pessoa competente e extremamente preocupada com o dinheiro e vendas da empresa em que trabalha. Em entrevista ao Observatório da Televisão, Shirley Cruz detalhou a personalidade dessa mulher e revelou a sua principal fonte de inspiração: a vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018.

Quando pensei nesta mulher, poderosa, firme, charmosa, firme e inteligente, pensei muito em Marielle Franco. Espero fazer da melhor forma”, explicou a atriz.

Ao longo da conversa, Cruz também falou sobre o tema racismo que estará presente na trama de sua personagem, comentou o amor que tem pelo cinema, e muito mais. Confira a seguir:

A personagem

Pode falar um pouco sobre sua Gláucia?

Eu faço a Gláucia, diretora comercial da editora, uma mulher preocupada com o dinheiro e com as vendas. Ela ama a editora e a literatura, então está a serviço para que tudo dê certo. É uma mulher inteligente, lésbica, que não sei como será tratado. É muito direta, fala tudo na cara, não tem meio termo e está neste time para que tudo dê certo.”

É um personagem dramático ou tem humor?

O humor arde! Somos três diretores: Mario (Lucio Mauro Filho), Willian (Diego Montez) e eu. É um trio engraçado e a gente tem muito a presença de Silvana Nolasco (Ingrid Guimarães). Então acontecem algumas coisas dentro da editora que vão do drama ao humor.” 

Núcleo da editora Prado Monteiro em Bom Sucesso
Núcleo da editora Prado Monteiro em Bom Sucesso Foto Paulo BeloteGlobo

A Gláucia vai ter um par romântico?

Estou doida para saber também e quero que tenha. É um desejo porque não tem como deixar de ver que é uma mulher negra, bem-sucedida e culta. Temos uma preocupação grande de não estereotipar porque ela é charmosa, sensual, não ‘coça o saco’, e fiquei procurando referências para uma mulher negra, rica, bem-sucedida e lésbica. Não achei. Deve existir alguém que reúna todos estes requisitos por aí. Era uma preocupação de todos fazer da melhor forma porque tudo é estereotipado e isso é muito ruim. Quando pensei nesta mulher, poderosa, firme, charmosa, firme e inteligente, pensei muito em Marielle Franco. Espero fazer da melhor forma.”

A inspiração

O que você pesquisou ou ouviu sobre Marielle Franco para te inspirar?

Eu continuo trabalhando como jornalista para um veículo da Noruega e conheci recentemente a viúva dela. Não a conheci pessoalmente, mas descobri que não é tão diferente do que a gente já sabe, então me inspirei na figura dela e busquei referências em vídeos. Acho que tem mais a ver com a força e a presença de quem abre a boca é taxativa. Seja para quem for. Não sei muito diferente dela, mas tenho uma admiração. Quando vejo uma mulher negra bem-sucedida, sinto coisa… Com a Marielle é isso! O pouco que eu sei me deixa impressionada.”

Racismo na trama

Nesta novela vocês falarão sobre racismo. Está preparada para as polêmicas que podem gerar?

Estou preparadíssima! Acho que minha presença nesta novela, neste ambiente e com o poder de mando será um ato político. O que eu ouvi de concreto é que os autores querem muito a Glaucia nesta novela, então estou preparada! Acho que muito legal fazer uma novela de muita vivência. Me sinto mais madura. Não estou preocupada em agradar.”

Vão ter cenas de preconceito em que a diretora será confundida com a faxineira por ser negra, por exemplo?

Acredito que não porque o figurino é impecável. Essa comunicação visual vai existir. Você só sabe que ela é lésbica porque ela fala com naturalidade sobre o assunto. É assumida com tranquilidade. Quando eu era criança, minhas referências eram Gloria Maria e Zezé Motta, mas hoje isso é mais amplo. Ainda quero, um dia, não precisar mais ter de salientar ‘uma mulher negra’, mas ‘uma mulher’. Fazer uma personagem desta em uma novela contribui para que isso aconteça. Sempre penso naquela menina pretinha do Morro do Alemão vai me ver e pensar que existe uma possibilidade de crescer porque eu estou aqui. Quero abrir este portal dentro do peito das meninas negras.” 

Shirley Cruz caracterizada como Gláucia
Shirley Cruz caracterizada como Gláucia Foto GloboJoão Cotta

A mulher negra

Você tem mostrado que a mulher negra não é mais só a empregada, mas a chefona que manda e mexe com o dinheiro, né?

Exatamente! Durante a preparação eu tinha poucos elementos, então tive de contribuir e até criar. Me colocaram a questão: ‘de onde a Glaucia vem?’. Se é uma mulher bem-sucedida, veio da pobreza? Não acho. Até o fato de ser lésbica é algo que a deixa muito segura quando fala disso. Imagino que uma pessoa segura e que não se esconde tenha vindo de uma família de amor, de classe média. Eu vim também! Nunca estudei em colégio público. As pessoas não enxergam que o negro tenha vindo deste lugar. Sempre é de um projeto social. Queremos ajudar, com cuidado, a construir esta imagem para o público. Eu até participei de um projeto social que me faz ser a artista que sou hoje. Comecei minha história fazendo Cidade de Deus e foi muito louco porque acabamos todos muito apaixonados um pelo outro, incluindo a produção. O Fernando Meirelles sempre muito preocupado com o futuro deste elenco, de 90% negros, a maioria não atores, com exceção de mim, que estava começando minha história. Eles abriram uma escola de cinema para nós…”

“Comecei minha história fazendo Cidade de Deus”

“… Todos passamos por uma escola produção cinematográfica como maquiagem, produção e roteiro para que tivéssemos a oportunidade de trabalhar quando não estivéssemos em frente às câmeras. Não tenho dúvidas em afirmar que Cidade de Deus tenha mudado a história do cinema, do artista negro, tudo. Isso sinto na pele até hoje. Vim de um projeto social e, deste grupo, 50% deu super certo e a outra metade super errado. Já se passaram 20 anos e, às vezes quando tem uma grande oportunidade, nem sabe o que fazer com ela. Minha família dizia que era importante estudar outra coisa: fui repórter de televisão em outra emissora e isso só me ajudou. A princípio, artes cênicas pode parecer que não tenha nada a ver com jornalismo, mas entrar ao vivo, lidar com questões difíceis e ir para as ruas me faz ser uma artista mais potente. Não tenho dúvida disso. Só acrescenta.”

Paixão pelo cinema

O cinema nacional está estourando aí. A novela vai te privar de muito trabalho, né?

Já está privando, nega! Minha escola é o cinema e conflita mesmo. Esta é minha primeira novela, digna, com uma oportunidade bacana. Muitos anos atrás, eu fiz duas ou três participações que não me atendiam. Graças a Deus, como uma artista negra, não tenho de que reclamar. Faço muito cinema e chega uma hora que temos de passar pela experiência da novela, principalmente neste momento econômico difícil que vivemos porque agora terei um ano de contrato e durmo tranquila. Tenho plano de saúde [risos]! Mas fica mais difícil conciliar o teatro e o cinema, já fiz muita coisa na Netflix, foi uma ótima experiência fazer a Zezé Motta jovem em ‘3%’, minhas experiências e as oportunidades que tenho foram maravilhosas. Tem muito artista negro que busca oportunidades e, neste quesito, a Glaucia me supre. Ela é inteligente, tem suas tiradas. E teve a experiência em Cannes, né, gente… Fiz A Vida Invisível de Eurídice Gusmão…” 

Shirley Cruz durante Festival de Cannes com Carol Duarte, Gregório Duvivier, Júlia Stockler e Bárbara Santos
Shirley Cruz durante Festival de Cannes com Carol Duarte Gregório Duvivier Júlia Stockler e Bárbara Santos Foto ReproduçãoInstagram

Como foi a experiência de representatividade em Cannes?

Quando você ganha o título de melhor filme, todo mundo ganha. Claro que o roteirista em um mérito, mas um prêmio como este todo mundo merece, desde o caboman até o resultado de quem está em frente às câmeras. O Karin é um diretor com muito desejo de trabalhar. É um filme que fala sobre a possibilidade de a mulher existir. Se passa na Tijuca, no subúrbio do Rio de Janeiro, em 1950, e você não podia ter desejos e vontades. Precisava casar para isso. Não dá mais para ser artista sem contribuir. Sinto que fiz isso positivamente.”

*Entrevista feita pelo jornalista André Romano.

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