Jorge Lucas define Venâncio de Orgulho e Paixão: “Um homem 50 anos à frente do seu tempo”

Publicado em 20/07/2018

Apesar de ser ambientada no início do século XX, Orgulho e Paixão não é uma produção clichê. Livremente inspirada nas obras de Jane Austen e escrita por Marcos Bernstein, a novela narra a luta por igualdade numa sociedade patriarcal e dividida por castas. Com pensamentos libertários, o jornalista Venâncio Castro, interpretado por Jorge Lucas, chega na trama para formar dupla com a protagonista Elisabeta (Nathalia Dill) – uma mulher forte que sonha em trabalhar e conhecer o mundo.

Negro, filho de uma escrava e um homem branco, Venâncio causará burburinho no Vale do Café ao fundar seu primeiro jornal ao lado e Elisabeta. “Ele desde pequeno sempre quis ser jornalista”, confessou o ator durante uma conversa com o Observatório da Televisão.

Ao longo do bate-papo, Jorge Lucas também comentou sobre sua carreira profissional, onde realiza diversos trabalhos como dublador. Ele é o responsável pelas vozes brasileiras de Ben Affleck em Batman vs Superman, de David Duchovny em Arquivo X, de RuPaul Charles em RuPaul’s Drag Race, entre outros. Confira:

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Dublador

Antes de tudo, você tem noção de quantos trabalhos já realizou como dublador?

Muita coisa! Já são 26 anos na dublagem brasileira com muito orgulho. Já fiz Avatar, Arquivo X, Batman vs Superman, tanta coisa. É uma história dentro da dublagem.

Como você conquistou o personagem Venâncio na novela?

Foi teste. Eu fiz A Lei do Amor, em 2016-2017, a primeira novela que eu fiz inteira, novela das oito. Trabalhar com o José Maya foi um prazer inenarrável. Era um personagem bem conciso, o Ramiro. E agora me chamaram para fazer esse teste para o Venâncio Castro, um personagem radicalmente oposto do Ramiro, que é todo para fora, empreendedor, libertário, um negro filho de uma escrava e de um branco, ambos analfabetos, que se torna pela vontade própria e pela vontade de vencer na vida, no início do século passado, editor de um jornal.

Ele é muito legal, ele tem uma célula, assim dizendo, um vulcão dentro dele que bate direitinho com a Elisabeta (Nathália Dill). É uma empatia de energias, eu diria. É uma novela de época, uma produção de artes que emociona de ver. Reconstituição, figurino, texto, tudo… e ver o início da libertação feminina é tão legal, tão importante porque é o início de libertação de todos: mulheres, negros, gordos que também sofrem muito preconceito. Todas as ditas minorias.

Jorge Lucas fala sobre importante cena de Orgulho e Paixão

Como foi fazer a cena em que o Venâncio dá a Elisabeta a oportunidade de trabalhar no jornal?

Uma cena muito bonita. Quando eu li falei: ‘caramba, que cena importante’. Ela é uma figura muito importante, uma figura emblemática dentro disso que eu estava falando da libertação da mulher e encontra nele, ou ele vê nela, uma identificação muito grande. Ela é tão oprimida quanto eu sou. Então deixa eu dar a oportunidade que eu também tive que abrir na base do tapa, digamos assim, como ela abre e rompe a energia do jornal, e ele fica: ‘que energia é essa? Quem é essa mulher? Quem é esse ser tão parecido comigo? ’

E como foi o seu encontro com a Nathália Dill?

Ela é uma pessoa deliciosa. Ela tem bastante a ver com a personagem em termos de energia, em termos de simpatia, em termos de talento. Está sendo maravilhoso, muito doce. A gente tem uma contracenação muito legal. Ela é uma pessoa fácil, da melhor maneira possível, de se trabalhar.

O que vem por aí

A Elisabeta e o Venâncio abrirão um novo jornal. Como vai ser esse novo desafio?

Estamos começando. Novela é aquela coisa, como vai ser eu realmente não sei. Vai ser um jornal desbravador também, tem bem a ver com eles.

Como foram as suas pesquisas e preparação para interpretar um editor de jornal?

Vocês não sabem, mas eu também sou jornalista. A minha primeira faculdade foi a de jornalismo, quando ainda era reconhecida, né, porque… abafa o caso. Trabalhei muito pouco, mas tenho essa experiência com o jornal, de ter feto uma faculdade, de ter trabalhado um pouco. E eu acho que jornalistas e atores, nós temos uma proximidade. Todo jornalista tem uma sensibilidade, tem que ter para procurar uma pauta, para procurar, investigar. E a coisa de ser uma novela de época, eu sou um homem que leio muito, gosto de história, então é um universo que me atrai. O ator tem que estar sempre estudando, assim como o jornalista. A gente tem que estar sempre pesquisando, vendo um filme, um espetáculo, um seriado. Eu acabo de me deparar com uma prensa de jornal que os nossos antecessores colocavam letra por letra para fazer o título. É emocionante ver isso!

História de Venâncio

Qual a história de vida do Venâncio? Ele teve grandes amores?

A história de vida dele é que ele é um homem que, desde quando nasceu, não tem aceitado aquele lugar. Assim como a Elisabeta, um homem 50 anos à frente do seu tempo. 60, 70, 80 anos à frente do seu tempo. Ele desde pequeno sempre quis ser jornalista e, como eu falei, ele é filho de dois analfabetos, foi estudar por ele mesmo, aprendeu a escrever, se inspira em Machado de Assis, um dos grandes escritores brasileiros que eu também gosto muito e também era mulato. Ele foi atrás da vida dele, começou como repórter no interior e tinha o sonho de se tornar editor de um grande jornal da capital. Teve que usar um pseudônimo, como ele sugeriu para ela (Elisabeta) por ser mulher. Grandes amores? Isso não é comigo!

Sonhos

O Jorge Lucas também foi um homem à frente do seu tempo? Enfrentou desafios para conquistar seus sonhos? Teve decepções?

Eu acho que todo mundo sempre tem frustrações, todo mundo passa por impedimentos. Eu tenho uma colega atriz e ela fala uma coisa maravilhosa: ‘o meu currículo de nãos é muito maior do que o meu currículo de sins’. E isso é na vida de todo mundo. Aprender a lidar com o ‘não’ na vida é o que traz a sabedoria, é o que traz a maturidade, é o que vem trazendo a inteireza com você. O que é estar à frente do meu tempo? Na minha concepção de vida é eu tentar fazer diferente. Eu percebo pelo tempo que estou aqui no mundo, entre as pessoas que fizeram e fazem alguma coisa, todas elas dizem a mesma coisa: ‘ok, estão dizendo que tem que ser assim, mas eu não aceito. Eu vou tentar fazer diferente’.

Preconceito

Voltando para o seu trabalho como dublador. Você já recebeu algum comentário preconceituoso nas redes sociais por ser negro? Por exemplo: “o ator que dubla tal personagem é negro”.

Não, absolutamente não! Em relação a minha voz e eu ser negro, absolutamente não. Sendo muito honesto. Eu sou dublador porque eu sou ator, e eu sou extremamente grato a profissão de ator e dublador, e por ser ator e dublador no Brasil, e por ser ator e dublador negro no Brasil. Eu vivo de cultura desde que me tornei profissional, já tem bastante tempo, e eu sempre fui muito bem recebido, acarinhado, respeitado. Eu ainda não ouvi e espero não ouvir. Eu já ouvi coisas como por exemplo: ‘fulano que deveria estar dublando tal personagem e puseram você’. Eu desconsidero, não respondo, não entro em controvérsia, não crio celeuma. Eu quero fazer o meu trabalho da melhor maneira possível e atingir aqueles que eu quero atingir e que querem ser atingidos por mim, pela minha arte.

Quem reclama não quer ser atingindo pela arte daquela pessoa, o outro já está de mente fechada. Substituíram o Batman em Hollywood 700 vezes, começou com o Michael Keaton, se não me engano, e terminou agora com o Ben Affleck, que sou eu que dublo há 25 anos no Brasil. Quando anunciaram nas redes sociais que seria o Ben Affleck fazendo o Batman, as pessoas falaram: ‘ele ia acabar com o Batman porque ele é bonitão, porque o Batman é o cavaleiro das trevas’. Cara, na boa, é o melhor Batman da história, na minha opinião. Ele é o Bruce Wayne, ele é bonito pra caramba, elegante pra caramba e quarentão. É a figura, ele está perfeito ali. Daí quando viram o filme, viram que ele é bom mesmo.

Reconhecimento do público

E as pessoas reconhecem a sua voz nas ruas? Comentam?

Comentam. Aqui (na Globo), principalmente o pessoal da sonoplastia, quando eu abro a boca no ensaio me perguntam: ‘você que faz o Vin Diesel, né? ’, ‘você é o Vin Diesel, né? ’. É impressionante como aquela franquia do Vin Diesel faz sucesso, já está indo para o nono (filme), graças a Deus (risos). É adrenalina pura, você não tem que pensar. Você senta, começa a ver aquilo, carros maravilhosos correm para lá e para cá, um roteiro tutti-frutti. A minha irmã é louca por carros e pelo Vin Diesel.

Você tem algum personagem dublado como preferido?

Eu amo alguns. Eu amo o Avatar, me emociono quando falo daquele filme até hoje, eu chorei dublando aquele filme. Amo Fox Mulder, do Arquivo X. O Batman porque eu tenho uma relação, acho que todos mesmo que não goste, da barriga de mãe. Da barriga da minha mãe eu já sabia que o Batman existia.

Batman

Como foi o processo para você conseguir dublar o Batman?

Eu mandei currículo para Warner porque eles queriam saber o que eu já tinha feito do Ben Affleck e o que eu já tinha dublado de outras coisas. A gente foi em Los Angeles ver o filme a convite deles antes porque a cópia veio protegida. E quando, verdadeiramente, eu me vi no anfiteatro de cinema da Warner, em Los Angeles, eu e mais três colegas, vendo Batman vs Superman, e eu sendo recebido por eles, por uma equipe japonesa que também ia dublar no Japão, cara… muito obrigado, Deus! Valeu a pena, está valendo a pena.

Durante a dublagem você sente como se estivesse em cena com o personagem?

Na dublagem é diferente, é uma coisa muito distanciada. A dublagem está pronta, eu tenho que ter um respeito enorme pelo colega que fez aquele trabalho. Aqui (na novela) sou eu com direção, luz, figurino, maquiagem e cabelo. Sou eu como ator inteiro, a minha peça, a minha carne. Lá (no filme original), houve alguém que escreveu, que pensou, alguém que roteirizou. Teve um figurinista, cenário, trilha sonora, direção, trabalho do ator, o coach do ator. Eu tenho que pensar no cachê que aquele ator ganhou (risos). É diferente, é mais distanciado.

Dificuldade como dublador

Em uma conversa com o dublador do Capitão América, ele disse que quando a cópia do filme vem protegida a dublagem é feita sem imagens. É complicado trabalhar desse jeito?

A gente vê a boca. É bastante complicado. Algumas cópias são assim por causa de pirataria, dos haters. Por isso que eu disse que é uma coisa muito distanciada e eu só tenho a minha voz ali. Aqui (na novela) eu tenho a minha inteireza, eu estou inteiro, o foco está em mim.

É verdade que a dublagem brasileira é uma das melhores no mundo?

Eu considero a melhor. Os estúdios internacionais sempre nos mandam vários elogios. A dublagem do Batman contra o Superman, que foi o primeiro, foi super elogiada. Eu tive o prazer de dublar o Duende Verde no primeiro Homem-Aranha, e também foi uma dublagem muito elogiada. Eu fiz com uma voz completamente alterada da minha. A dublagem brasileira é muito boa. Eu tenho a oportunidade de viajar, às vezes, para fora do Brasil e eu gosto de sempre antes de dormir ligar a televisão daquele país para ver o telejornal e um filme. E assim, às vezes é chocante.

Encontros

Você já encontrou com algum ator que já dublou? Quem você gostaria de encontrar?

Ainda não tive o prazer de encontrar ninguém. O cara que eu adoraria encontrar é o RuPaul Charles, que eu já dublei algumas coisas. Eu dublei nas temporadas 7 e 8 de RuPaul’s Drag Race e no Peles em Guerra, uma das temporadas, mas tem muito tempo e que também não é com essa voz. Ele (RuPaul Charles) é um desbravador. Eu já vi umas entrevistas dele e ele não aceitou aquela realidade, ele foi criar algo para ele.

Ele é um cara que eu gostaria de conhecer. O David Duchovny, que faz o Fox Mulder, eu gostaria de conhecer porque também já vi entrevistas dele e ele é um pândego. Ele tem um livro que eu já tive a oportunidade de ler, uma coisa bem fina e rápida, e ele é tão maluco e engraçado que nesse livro o narrador é uma vaca. É o mundo do ponto de vista de uma vaca. É uma doideira, a cabeça desse cara não é normal.

O que você diria para o RuPaul Charles?

Eu diria: ‘muito obrigado! Muito obrigado pelo o teu trabalho, pela libertação. Porque é mais uma minoria que se liberta e se identifica’. Aqui está lindo, cheio de mulheres. Vocês não agradecem as grandes mulheres que têm espaço lá fora hoje? Então! Eu sou negro e agradeço a Martin Luther King, a Dona Ivone Lara, a tantos outros. As minorias precisam se ver para se identificar e saber que é possível.

*Entrevista feita pelo jornalista André Romano

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