Bella Piero fala da repercussão de personagem em O Outro Lado do Paraíso: “As pessoas abraçaram a Laura”

Publicado em 18/04/2018

A novela O Outro Lado do Paraíso está chegando ao fim, e entre o leque de temas abordados pelo folhetim de Walcyr Carrasco, esteve a pedofilia e o abuso sexual, levados ao ar através da personagem Laura, uma jovem que na infância havia sido molestada pelo padrasto.

Bella Piero, intérprete de Laura, bateu um papo com o Observatório da Televisão, e contou como tem sido a repercussão da personagem, além de relatar sentir emoção ao ler mensagens de pessoas que já passaram pelo mesmo drama de sua personagem. Confira a entrevista completa:

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Como surgiu a arte em sua vida?

“Não consigo lembrar o momento em que escolhi ser atriz, porque, desde que aprendi a falar, já exteriorizava esse desejo. Acredito que é algo transcendental. Não consigo me ver longe da arte. Não consigo ver minha arte longe de mim. Nunca tive um plano B. E depois de muito estudo, amor, dedicação e testes, hoje posso viver do que eu amo fazer. Isso é muito realizador. Ser tão nova e estar exatamente no lugar que eu quero estar, falando sobre o que eu quero falar.”

Você já participou de vários folhetins da TV Globo. Mas sem dúvida nenhuma, Laura alavancou você para todo o Brasil. Bateu algum tipo de insegurança ao ser convidada para interpretar essa personagem tão complexa e cheia de camadas?

“A Laura é uma personagem forte sim, mas que na verdade tem uma história muito real e comum. Existem muitas Lauras por aí. E justamente isso foi o que mais me inspirou. Saber que eu estava contando a história de milhares de pessoas e que elas sofreram demais tentando lutar contra seus próprios monstros e memórias. Assisti muitos filmes e documentários, li livros e vi palestras. Fiz 2 workshops dentro da novela e fiz um trabalho bem profundo e intenso de mergulho para compor essa personagem da forma que mais se aproximasse da realidade, porque a quantidade de material real de referência ao abuso sexual me assustou e me fez querer dar voz a essas vítimas. E gritar toda essa dor. Ressignificar. Mostrar que é possível lutar, denunciar e vencer. E principalmente, mostrar que o abuso sexual é uma triste realidade, mas não é normal, não pode ser naturalizado, é um crime!”

Nos primeiros encontros com a imprensa, você não falava nada em relação aos abusos sofridos pela personagem. Teve algum tipo de medo em relação a aceitação do público?

“A Laura teve um arco dramático muito grande, ela passou por várias transformações ao longo da trama. Começou sendo uma personagem com postura muito introspectiva, tímida e envergonhada. E o público não conseguia entender isso. Julgavam sua aparência, acreditando que era o mais importante e diziam que ela era chata e fazia muito drama. Até a história se desenvolver e entenderem porque ela se apresentava daquele jeito. Quais eram os monstros que ela carregava. Foi triste ver, mais uma vez, a culpabilização da vítima, mas foi também muito importante para fazer reverberar e refletir o quanto ainda precisamos de empatia e de sororidade à nossa volta. E o quanto é necessário alterar esse sistema falho em que vivemos,  essa cultura machista e de culpabilização. Os valores estão todos muito invertidos. Depois que os fatos vieram à tona, que a Laura relembrou e denunciou, foi muito bom ver o empoderamento dessas vítimas. O quanto elas se sentiram representadas e estimuladas a lutar contra todo esse crime.”

O público comprou a história da personagem. Tanto é, que a cena do tribunal parou o Brasil, né? Como você se sentiu com a resposta do público?

“Após as cenas de denúncia da personagem e do julgamento, os números de denúncia nas delegacias triplicaram. E eu recebo mensagens até hoje! Algumas vítimas se sentiram com coragem e força para não se calarem mais. O público apoiou muito a Laura, queria abraça-la. O abuso sexual é um tema gravíssimo, do qual estamos longe de falar o suficiente. Mas precisamos falar sempre sobre o assunto, porque, se ele permanece abafado, as vítimas permanecem acuadas, com vergonha de falar sobre o que sofreram, com medo de serem consideradas culpadas, de não acreditarem nelas ou de simplesmente sofrerem retaliação por revelarem a agressão. Para que o abuso sexual deixe de ser uma recorrência e um cenário normal, é preciso que haja denúncia, e as vítimas precisam sentir que há receptividade para que tenham coragem de falar. Não podemos manter encoberto um crime tão grave! E acho que o público entendeu isso com a história da Laura.”

Como está sendo o carinho nas ruas? Você esperava esse sucesso?

“As pessoas abraçaram realmente a Laura e são muito gentis e carinhosas, estou contente com a repercussão do trabalho, mas nosso objetivo principal era passar a mensagem sobre a gravidade do abuso, sobre como, infelizmente, é uma realidade comum e conscientizar as pessoas sobre o apoio que as vítimas precisam. Fico extremamente feliz, porque acho que conseguimos.”

Como foi gravar aquelas cenas do julgamento?

“Foi muito emocionante. Houve uma preparação muito grande em torno daquelas cenas, muito estudo e troca e, quando acabou, estávamos todos chorando e nos abraçamos. Foram emoções muito intensas. Ali, estávamos incorporando o grito sufocado de todos aqueles que clamam por justiça, dos que expuseram seus casos e fizeram denúncias e dos que ainda não chegaram nesse estágio, mas que espero que cheguem, porque denunciar é preciso e não podemos nos calar.”

É uma grande responsabilidade falar de um assunto tão delicado que é a pedofilia, né?

“Com certeza. Eu me vejo extremamente realizada de poder juntar o meu trabalho artístico com uma função social dessa proporção. Para mim, desde o início, o sentido da arte é fazer sentido na vida de alguém. É transformar, transmutar, transbordar, através do questionamento. Para poder despertar reflexões sobre você mesmo e sobre a sociedade em que você vive, para então ver algum movimento ser feito interna e externamente. Eu penso que, se conseguir fazer alguém refletir, alguém repensar sua postura, alguém descobrir algo novo que existe dentro dela, eu conquistei minha missão. Ainda mais quando se fala sobre o tema abuso sexual, que representa tantas mulheres e homens também. Eu acredito no poder da arte. Para mim, é muito importante, dentro do meu trabalho, da minha arte, poder falar sobre coisas que me são caras e dessa forma trazer um novo ponto de vista para alguém. É o que eu busco e vou continuar buscando, sempre.”

Você tem recebido relatos reais de telespectadores? Como você se sente ao ler essas histórias?

“Recebo relatos até hoje e todas as histórias mexeram demais comigo. Cheguei a comentar isso em uma entrevista recente, mas não fui muito compreendida: acredito que toda mulher, dentro da nossa sociedade machista, já sofreu algum tipo de abuso. E não me refiro aqui somente ao abuso sexual. Existem muitas posturas abusivas camufladas por aí.  Como o abuso moral, psíquico, verbal, emocional, e o sexual. Foi muito triste ouvir os relatos de conhecidas, amigas e também desconhecidas. E ver o quanto esse assunto é naturalizado. Eu li todas as mensagens das pessoas que me confiaram os seus casos e todos eles me inspiraram.”

Como foi contracenar com a grande Ilva Niño?

“Eu fiquei emocionadíssima. Ao fim da gravação com ela, estava chorando muito. Já estava muito sensível com o tema, com todas aquelas vozes gritando por justiça dentro do meu corpo, e a presença dela foi extremamente forte e comovente.”

O que tira você do sério?

“O machismo, o desrespeito, a desigualdade, a impunidade.”

Como foi gravar no Jalapão?

“Foi muito mágico e libertador. É um lugar lindo onde nos sentimos completamente integrados à natureza. As sequências que gravamos também foram muito importantes para a Laura, foi uma autodescoberta. Ali, naquele ambiente, ela conseguiu sair da paralisia que os traumas haviam provocado e se libertar para sentir, para agir, para amar e seguir em frente.”

Como está sendo a troca com o Igor Angelkorte?

“Eu e o Igor procuramos desenhar a história dos dois de uma forma bem humana e transparente, para que esse amor ficasse tão forte quanto o medo que a Laura sentia. Eles conquistaram aos poucos uma cumplicidade muito grande e construíram uma relação madura e verdadeira, onde o mais importante é o amor. O Igor é um parceiro incrível, sensível e amigo e está sendo fundamental no desempenho do meu papel.”

Quem são as suas inspirações?

“Eu tenho o privilégio de dizer que estou trabalhando com algumas das minhas maiores inspirações – e ídolos. Fernanda Montenegro, Laura Cardoso, Lima Duarte, Eliane Giardini, Luiz Melo, Sandra Corveloni e Marieta Severo são artistas que eu cresci assistindo e admirando e, hoje, tenho o prazer de aprender com eles em cena e fora dela. Além dos profissionais incríveis que todos reconhecemos, são pessoas generosas, humildes, acolhedoras, que não têm vergonha de aprender e amadurecer a cada pequeno erro na leitura de texto. Eles me inspiram como ser humano. Catherine Deneuve e Antonia Campbell também foram grandes inspirações para compor a personagem.”

Qual o final que você deseja para a Laura?

“Quero que a Laura consiga lidar com os sentimentos conflituosos que habitam o coração dela e que ela seja feliz! Ela e o Rafael já se entendem na linguagem do amor e têm cumplicidade e transparência rara de se ver. Isso, só o amor é capaz de fazer. Depois da tempestade toda, vão juntos criar forças para renascer, se tornar um casal totalmente conectado. E ela vai estar em condições de viver as emoções que o trauma a impediu de sentir por tantos anos.”

Após o fim a novela, são os seus novos projetos?

“Eu só tenho 22 anos, e muita vontade de falar, produzir, escrever, atuar. Além disso, sou capricorniana, o que me faz ficar quase 24h do meu dia pensando em como eu posso contar as histórias que eu quero para as pessoas. A Laura ainda é minha personagem principal do momento, mas a novela já está na reta final e eu vou continuar trabalhando para contar boas histórias no cinema, no teatro, em séries ou em qualquer formato que me permita viver desafios e desafiar as pessoas também.”

Qual o Brasil que você deseja para a nova geração?

“Eu percebo que falta muita empatia. Todos nós somos muito acelerados. Vivemos no tempo constante da revolução industrial. Tudo precisa ser entregue a tempo, comercializado, a internet comanda o nosso ritmo.  E acaba faltando pouco tempo para o olho no olho. Para a humanidade das relações. Para olhar para o lado e observar. Perceber o que está acontecendo a sua volta. Quem está ao seu lado. Muitos pais não percebem que seus filhos estão passando por situações delicadas, como a do abuso sexual, por essa falta de diálogo vivo, dessa troca. Essa paciência e generosidade é que precisam existir, se colocar no lugar do outro e procurar saber quais são os monstros que ela enfrenta. E é claro, existem os pais que sabem muito bem quais são os monstros, as suas dimensões e forças, e continuam omissos. E também aqueles que foram mostrados recentemente, lá no Amazonas, que incentivam o envolvimento de seus filhos no mundo da prostituição para trocarem por alimento e conseguirem comer. Infelizmente a nossa educação é muito falha e cega. É uma realidade difícil, mas que precisa ser encarada para mudar. A educação das crianças precisa mudar. Esse diálogo precisa ficar mais sincero, mais linear, possibilitando uma base mais sólida que passe segurança tanto para os pais quanto para os filhos. O silêncio não é uma escolha.”

Deixe um recado para os nossos leitores.

“Não se calem, não desistam de construir um mundo mais igual, não pensem que não são capazes de fazer a diferença. A dinâmica de uma sociedade não muda de uma hora para a outra, precisamos de tempo, de persistência e de coragem para reverter o panorama do machismo e da cultura do estupro, que é vigente há tanto tempo, mas que não tem mais espaço em uma realidade de pessoas conscientes e inconformadas.”

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