“Acabamos presos dentro de uma aeronave por mais de oito horas”, relembra repórter Cintia Godoy sobre terremoto no Nepal

Publicado em 30/11/2016

Correspondente da Record há três anos, a jornalista Cintia Godoy conta com exclusividade ao Observatório da Televisão como é a sua rotina na Ásia, em especial o Japão. Formada em jornalismo pela UFMG, Godoy fala inglês, francês e o básico em japonês.

No continente asiático, Godoy já cobriu um dos maiores desastres da história. Um terremoto que atingiu o Nepal deixando mais de 8 mil mortos em 2015: “O pequeno aeroporto da capital Katmandu não suportava o fluxo de aviões, que tentavam entrar com ajuda humanitária, e que tentavam sair com turistas assustados pelo terremoto. Por causa disso, na tentativa de chegar até lá, acabamos presos dentro de uma aeronave em Bangladesh por mais de oito horas”, lembra Cintia

Confira entrevista exclusiva: 

Quais as principais dificuldades que você já enfrentou? 

Quando cheguei ao Japão, não falava nada do idioma local, com exceção dos conhecidos “arigato” e “sayonara”. A língua foi e ainda é, sem dúvida, a maior dificuldade. Por se tratar de um idioma com uma estrutura completamente diferente das línguas latinas, com o uso de símbolos e construções verbais que eu desconhecia, a dificuldade de aprender é ainda maior. Ainda hoje, posso olhar para placas no metrô e não ter a mínima ideia do que elas sinalizam. Além disso, o Japão é um país de costumes únicos e levei um tempo para me adaptar a eles também.

Já enfrentou algum perigo? (Furacão, atentado, nevascas, etc)

Moro em um dos países de maior atividade sísmica do mundo. Terremotos acontecem todos os dias. O Japão ainda é suscetível a tufões, tsunamis e erupções vulcânicas. O engraçado é que me sinto bastante segura aqui e não acredito que tenha enfrentado nenhum perigo real até o momento.

A palavra medo existe no seu dicionário? 

Sim, claro. Tenho vários medos. Mas acho que eles nunca me impediram de realizar meu trabalho ou de fazer algo que achava importante ou queria fazer. O medo pode ser bastante útil. Te ajuda a ter cautela, refletir melhor sobre uma situação e até mesmo conhecer seus limites.

Qual o limite na busca pela informação? 

Em tudo que faço na minha vida, me limito pelo respeito ao próximo, pela ética, pela forma como minhas ações vão afetar outras pessoas. No trabalho não é diferente. É claro que cada situação deve ser analisada, mas jamais iria contra o que acho certo só para conseguir um “furo”, por exemplo.

Como lida com a saudade da família, amigos, entre outros? 

Difícil. Saudade não desaparece, mas saber que têm pessoas que te amam, não importa o quão longe você esteja, é como receber carinho deles. E, claro, viva a tecnologia! Já perdi a conta de quantos aniversários e casamentos participei no Brasil pelo “Skype”.

Como se adaptou às mudanças de clima, cultura?

Sou uma grande admiradora da cultura japonesa. Até hoje, me surpreendo com esse país e me pego pensando “ah, só no Japão isso acontece…”. A verdade é que fomos criados com uma mentalidade ocidental e por aqui, na Ásia, as coisas funcionam de uma forma bem diferente. No Japão principalmente. Um arquipélago que por muito tempo se fechou para o resto do mundo e acabou desenvolvendo uma sociedade com características únicas. No início o choque cultural foi enorme. A impressão, muitas vezes, era de que costumes, práticas, forma de pensar, não faziam o menor sentido. Mas é preciso estar aberto para tentar entender a cultura do país em que se vive. E essa é a parte interessante de estar em país tão distinto. Estar sempre aprendendo algo novo. Tudo é descoberta. Sobre o clima, foi bem fácil. Amo estar em um país que tem as quatro estações bem definidas. Bom para perceber a passagem do tempo.

Está acompanhada de pais, filhos, marido? 

Vim desacompanhada para o Japão. Só eu e Deus.

O seu sonho sempre foi ser correspondente ou acabou acontecendo?

Sempre amei viajar e conhecer novas culturas. E amo a minha profissão. A junção dos dois me parecia o trabalho dos sonhos, claro. Mas não tinha expectativas claras de ser correspondente, ainda mais no início da carreira. Quando o convite para ocupar o escritório de Tóquio veio, foi uma incrível surpresa.

Uma cobertura marcante? 

Nepal. 25 de abril de 2015. Lembro de que quando recebi a notícia de que um forte tremor, de 7.8 graus, havia acontecido nesse pequeno país, ao norte da Índia, não sabia ainda a real magnitude do desastre. Foram mais de 8 mil mortos e grande parte do país destruído. As dificuldades começaram antes de chegarmos lá. O pequeno aeroporto da capital Katmandu não suportava o fluxo de aviões, que tentavam entrar com ajuda humanitária, e que tentavam sair com turistas assustados pelo terremoto. Por causa disso, na tentativa de chegar até lá, acabamos presos dentro de uma aeronave em Bangladesh por mais de oito horas. Muitos dos que estavam ali eram nepaleses expatriados que voltavam para saber de parentes até então incomunicáveis. Quando finalmente aterrissamos no país, tive a impressão de estar diante de uma espécie de apocalipse. Nada funcionava direito. Multidões dormiam nas ruas. Pânico. Tremores menores continuavam acontecendo. Durante a cobertura entrevistei muitas pessoas que perderam familiares e tudo de material que tinham. Triste. Mas mais triste ainda é saber que um país com poucos recursos econômicos, que vivia do turismo local, talvez nunca se recupere de uma tragédia como essa. Por outro lado, me impressionei com a força dos nepaleses. Espiritualizados, não deixavam de dar um sorriso, mesmo em meio ao sofrimento. Torço para que eles se reergam da melhor forma possível. Um dia ainda quero voltar lá.

Quais as vantagens de ser um correspondente? 

Acho que a experiência de viver em outro país e se adaptar a outra cultura é algo único. Desenvolver um trabalho nessas circunstâncias é ainda mais especial. São muitos desafios, mas a satisfação de conhecer partes do mundo que nem imaginava que conheceria, de sair da zona de conforto e aprender, aprender, aprender, é enorme. Ter a chance de cobrir eventos e acontecimentos marcantes me proporcionaram um crescimento profissional e pessoal incrível.

Como é a sua rotina? Por quanto tempo ficou sem dormir, comer?

Como trabalho com um fuso horário bem complicado (12 horas de diferença Brasil – Japão), acabei tendo que me adaptar a um trabalho mais noturno. Além de cobrirmos o Japão, temos que ficar de olho em acontecimentos no restante da Ásia também. Mas nada que prejudique a minha rotina, com exceção de acontecimentos grandes como o terremoto no Nepal, em que a urgência da cobertura exigiu algumas privações.

Conta com a ajuda de outras pessoas como empregados em casa? Se não, como você resolve essa questão? 

Conto com a ajuda de uma diarista, que vem ocasionalmente à minha casa. Nos outros dias, eu mesma limpo minha bagunça.

Como você é tratada pelas pessoas e demais colegas de profissão no pais onde mora?

Com muito respeito. Os japoneses são muito profissionais, respeitosos e simpáticos.

Usa mais carro ou transporte público? 

Quase 100% transporte público.

Tem algum lugar ou coisa que lhe agrada neste pais?

Vários. Lugares: Tóquio é uma das minhas cidades preferidas do mundo. Uma junção do Japão moderno, tecnológico, avançado, e das tradições milenares do país. Limpa, organizada, segura. Quioto é um lugar que todo mundo deveria visitar pelo menos uma vez na vida. Bem menos contaminada por culturas estrangeiras do que a capital. Em Quioto, muitas coisas permanecem do mesmo jeito, desde sempre. Uma deliciosa imersão na tradição japonesa. O único problema é que a maior parte dos japoneses, principalmente os mais velhos, não falam inglês. Algo que eles têm tentado melhorar por causa das Olimpíadas de 2020.

Coisas: difícil listar. São muitas coisas que me agradam aqui. Como falei antes, adoro o fato do Japão ter as estações do ano bem definidas. Apesar do verão ser desconfortavelmente quente e úmido, e do inverno ter temperaturas abaixo de zero, a primavera e o outono são presentes divinos. A época da floração das cerejeiras, a Sakura, é mágica. O país todo celebra como se fosse uma espécie de carnaval no Brasil.

Já pagou algum mico por conta da cultura local? 

Alguns. Acho que as situações mais embaraçosas estão relacionadas ao contato físico. Ao contrário do Brasil, aqui as pessoas não costumam se encostar. Muitas vezes já ofereci um aperto de mão ao me apresentar a um entrevistado e acabei no vácuo. (risos)

O que há de mais exótico no pais onde vive? 

Acho que alguns hábitos alimentares são bem incomuns para nós, brasileiros. Apesar do sushi e sashimi terem se popularizado bastante no Brasil, por aqui as variedades são bem maiores. Eles comem diversos tipos de frutos do mar cru, além de carne de baleia, barbatana de peixe e até sushi cru de carne de cavalo. Até hoje não tive coragem de provar nenhuma dessas “iguarias”.

Quando os brasileiros te encontram o que eles mais dizem? 

É muito bom encontrar com brasileiros aqui. Faz falta falar o nosso português de vez em quando. Acho que as conversas geralmente oscilam entre saudade da família, da comida e da alegria genuína do Brasil.

Quando era repórter o Brasil, em quem você se espelhava como correspondente? 

Engraçado, apesar de nunca imaginar que viria morar no Japão, sempre admirei o trabalho de correspondentes brasileiros que trabalhavam aqui. Como o colega André Tal e Roberto Kovalick. Ilze Scamparini também sempre chamou minha atenção.

Tem vontade de mudar de região? Por quê?

Estou muito feliz aqui e acredito que ainda tenho muito para contar sobre a Ásia. Mas estou aberta para qualquer novo desafio que possa aparecer. Tenho curiosidade de vivenciar qualquer outra cultura no mundo.

A vivência no exterior fez você ter uma visão mais positiva ou negativa em relação ao Brasil? Por quê?

Me ajudou a ter uma visão mais ampla sobre o Brasil. Precisei sair daí para entender melhor o meu próprio país. É claro que tem muitos exemplos de sucesso no Japão que poderíamos tentar replicar no Brasil, mas tem muitas coisas positivas aí que poderíamos trazer para cá também. Acredito que temos sim muitas coisas para nos orgulharmos do nosso país. Porque, na verdade, nenhum lugar no mundo é perfeito. Sempre vão existir lados bons e ruins.

 

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