Intensa e inquietante, Dois Irmãos fisga o público, a crítica e prova que não é preciso ritmo frenético para fazer sucesso

Publicado em 21/01/2017

O Projeto Quadrante, de Luiz Fernando Carvalho, voltou. E voltou melhor! A Globo não mais usa este nome, mas a minissérie Dois Irmãos fazia parte dos planos do Quadrante, um projeto do diretor de levar a literatura brasileira para as telas da TV, em obras representativas de regiões do país convertidas em séries produzidas in loco, com mão de obra local. As obras iniciais do Projeto Quadrante, A Pedra do Reino (2007) e Capitu (2008), não obtiveram a aceitação esperada pela direção da Globo, e as séries previstas para virem na sequência, Dois Irmãos e Dançar Tango em Porto Alegre, foram suspensas.

Retomado cerca de sete anos depois, o projeto de Dois Irmãos finalmente saiu do papel. No entanto, além de esperar tanto tempo para ser produzida, a minissérie ainda teve de aguardar quase dois anos para ir ao ar. Filmada em 2015, Dois Irmãos foi ao ar nas duas últimas semanas. E o resultado foi o melhor possível. Sucesso de público e crítica, Dois Irmãos colocou o agora extinto Projeto Quadrante no lugar consagrado que lhe é de direito.

Sem o hermetismo de A Pedra do Reino e sem as concessões “rap operísticas” de Capitu, Dois Irmãos manteve intacta a assinatura de Luiz Fernando Carvalho, mas se mostrou mais acessível que as produções anteriores. Diminuiu-se o tom lúdico e os figurinos excessivamente exóticos e aumentou o pé na realidade, visto na constituição da Manaus entre os anos 1920 e 1980, traduzida em belos cenários e fotografia deslumbrante. O tom barroco permaneceu, mas dialogou perfeitamente com a época e a trama em si. Com isso, não afugentou o público um tanto avesso às novidades, e sem precisar abrir mão da qualidade para isso. Não há dúvidas de que Dois Irmãos foi uma obra de arte na TV.

Deixando a plástica sempre eficiente da equipe de Luiz Fernando Carvalho de lado, Dois Irmãos também teve o mérito do texto afiado. A trama, adaptação de Maria Camargo da obra de Milton Hatoum, foi intensa, inquietante, cheia de elementos capazes de fisgar o público. A saga dos gêmeos Omar e Yaqub (vividos por Matheus Abreu e Cauã Reymond) traduziu a eterna luta do bem e do mal e a dicotomia das relações humanas. Trata-se de uma saga bíblica, desde Caim e Abel, colocando irmãos em pontos opostos, vértices de uma disputa eterna. Aqui, a distância entre Omar e Yaqub pode ter sido construída ainda na infância, com a escolha meio inexplicável da mãe entre um e outro. Zana (Gabriella Mustafá, Juliana Paes e Eliane Giardini) cuidou de Omar, o protegeu e o escolheu para ficar ao seu lado quando precisou separar os irmãos, mandando Yaqub para o Líbano. O tempo e a distância, no entanto, não fizeram diminuir a rivalidade entre ambos, muito pelo contrário, gerando novos conflitos e tragédias. Ou seja, um drama familiar e humano cheio de camadas, e é impossível o público ficar indiferente.

Há quem acuse Dois Irmãos de ser lenta, arrastada ou enfadonha. Concordo com o “lenta”, mas discordo veementemente do “arrastada” e “enfadonha”. Dois Irmãos andou ao seu próprio ritmo, com pausas e sinalizações herdadas da literatura, mas que destoam do ritmo veloz da TV de hoje, daí a estranheza. No entanto, tais pausas e contemplações foram fundamentais para que o público criasse seus laços com os personagens e as situações, compreendendo seus movimentos. Neste contexto, Dois Irmãos manda um recado claro para a audiência: não importa se o ritmo é lento ou veloz, desde que haja uma história e um motivo claro para determinar qual o melhor tom da velocidade. Precisamos ir além da atual máxima que prega que apenas obras com ritmo de YouTube fazem sucesso nos dias de hoje. A boa audiência de Dois Irmãos prova que isso não é uma verdade absoluta.

Também não dá para ficar indiferente diante de tantos bons atores em cena, e em momentos de pura inspiração. Aliás, também faz parte da assinatura do diretor Luiz Fernando Carvalho o intenso trabalho de preparação de atores, nivelando novatos e veteranos, e arrancando de todos o seu melhor. Ou o jovem Matheus Abreu não pode já ser considerado uma grata revelação? Antonio Fagundes, Eliane Giardini, Juliana Paes, Irandhir Santos, Antonio Calloni, todos tão plenos, viscerais e entregues ao enredo e donos de grandes momentos. E Cauã Reymond, mesmo com uma imagem um tanto saturada depois de tantos trabalhos seguidos, mostrou seu melhor momento na TV. Omar e Yaqub eram distintos, e o trabalho do ator deixou isso bem claro ao público.

Dois Irmãos, assim, encerra sua trajetória em meio a muitos e merecidos aplausos. Foi uma bela minissérie, que abriu a programação 2017 da Globo com chave de ouro. E, agora, fica a dúvida: será que o diretor e a emissora, depois deste sucesso, desengavetarão o projeto da minissérie Dançar Tango em Porto Alegre? Aguardemos.

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